Por Carolina Verginelli, sócia líder da prática de Tributos Indiretos da Deloitte, Bruna Bellini e Bruno Maestrini, sócia e sócio de Consultoria Tributária da Deloitte e Edson Yong Bin Im, sócio de Audit & Assurance da Deloitte
Aprovada pela Emenda Constitucional nº 132, de 20 de dezembro de 2023, e regulamentada pela Lei Complementar nº 214, de 16 de janeiro de 2025, a Reforma Tributária dos tributos sobre o consumo representa um marco histórico no sistema tributário brasileiro.
Ademais, atualmente aguarda-se aprovação do Projeto de Lei Complementar nº 108/2024, que institui o Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços (“CG-IBS”), e dispõe sobre o processo administrativo tributário relativo ao lançamento de ofício do Imposto sobre Bens e Serviços (“IBS”), sobre a distribuição para os entes federativos do produto da arrecadação do IBS, sobre o Imposto sobre Transmissão Causa mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos (“ITCMD”), além de outras providências sobre o tema.
Em razão das complexidades estruturais do sistema tributário vigente e das indefinições ainda existentes quanto ao novo modelo, especialmente no que tange à definição das alíquotas aplicáveis, a legislação aprovada da reforma estabelece um período de transição de sete anos.
Esse intervalo permitirá ao governo testar e ajustar a carga tributária do IBS (Imposto sobre Bens e Serviços) e da CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços), além de avaliar os impactos decorrentes da transição entre os regimes.
Durante esse período, os contribuintes estarão sujeitos à coexistência dos dois sistemas, o que implicará em maior complexidade operacional, exigindo adaptações sistêmicas e procedimentais. Contudo, a expectativa é que, ao final da transição, a adoção integral do novo modelo proporcione maior simplificação e eficiência na apuração tributária.
O início da transição está previsto para 2026, com a aplicação de alíquotas teste da CBS e do IBS (0,9% e 0,1%, respectivamente), que terão caráter informativo, ou seja, não haverá reflexo financeiro, desde que cumpridas as obrigações acessórias previstas em lei.
A transição está prevista considerando os seguintes marcos:
o Informação de CBS e IBS no documento fiscal de forma estatística, ou seja, sem que seja somado no valor total da nota fiscal.
o Extinção do PIS e da Cofins, e estabelecimento da alíquota definitiva da CBS.
o Redução das alíquotas do IPI a zero, mantendo a aplicação do imposto apenas aos produtos industrializados que sejam manufaturados na Zona Franca de Manaus, atuando como um mecanismo de compensação para manutenção da competitividade de empresas ali estabelecidas.
o O IBS será mantido à alíquota de 0,1%, havendo uma redução no mesmo percentual da alíquota da CBS.
o Início da vigência do Imposto Seletivo.
Adicionalmente, em decorrência da redução do ICMS, conforme o § 2º da lei complementar, os respectivos incentivos fiscais do ICMS também serão reduzidos na mesma proporção e durante o mesmo período (2029 a 2032).
Com o avanço das discussões sobre a Reforma Tributária, torna-se claro que serão necessárias mudanças estruturais significativas. Entre elas, destacam-se a adaptação às diferentes regras de créditos (como a distinção entre não cumulatividade plena e parcial), a elaboração de estratégias para homologar e monetizar saldos credores acumulados no regime atual, além do planejamento para ajustes na precificação de produtos e serviços, que poderão sofrer variações na carga tributária. Também será imprescindível revisar planos de investimento e analisar impactos no fluxo de caixa.
Nesse contexto, é crucial que os contribuintes estejam devidamente preparados para enfrentar o aumento da complexidade durante a fase de transição. Apesar dos desafios iniciais, vale ressaltar que o novo modelo tributário tem como propósito promover maior simplificação, transparência e estímulo à economia nacional, benefícios esperados após a implementação completa.
A possibilidade de considerar créditos nas aquisições é um dos pilares da não cumulatividade plena implementada pelo IBS e pela CBS na Reforma Tributária. Isso significa que os tributos pagos em aquisições ao longo da cadeia produtiva serão recuperáveis, resultando em uma tributação que incide apenas sobre o valor adicionado em cada etapa até que haja o consumo final.
Este é um mecanismo fundamental e que tem impactos significativos na economia e na gestão fiscal das empresas. Ou seja, o modelo do Imposto sobre Valor Adicionado (IVA), adotado pelo IBS e pela CBS, torna o tributo neutro para os negócios, independentemente do tipo de bem, serviço ou direito adquirido, desde que não elencado como Bens e Serviços de Uso ou Consumo Pessoal, não passíveis de creditamento.
O cerne do regime de créditos é definido pelo artigo 47 da Lei Complementar, que vincula a apropriação à quitação do imposto na cadeia anterior. Nesse contexto, o contribuinte sujeito ao regime regular da CBS e do IBS somente poderá apropriar créditos quando houver a extinção dos débitos relativos às operações nas quais ele é o adquirente. Esta regra visa garantir que o crédito só seja gerado após a arrecadação efetiva do tributo na etapa anterior.
Dentre as modalidades de extinção dos débitos trazidos na legislação estão:
I - Compensação com créditos, respectivamente, de IBS e de CBS apropriados pelo contribuinte;
II - Pagamento pelo contribuinte;
III - Recolhimento na liquidação financeira da operação (split payment);
IV - Recolhimento pelo adquirente; ou
V - Pagamento por aquele a quem a Lei Complementar atribuir responsabilidade.
Vale enfatizar a novidade de extinção dos débitos denominada “Liquidação Financeira (Split Payment)”. Ainda pendente de regulamentação, o split payment é o procedimento padrão pelo qual os prestadores de serviços de pagamento eletrônico e as instituições operadoras de sistemas de pagamentos são obrigados a segregar e recolher o IBS e a CBS diretamente ao Comitê Gestor do IBS (CGIBS) e à Receita Federal do Brasil (RFB) no momento exato da liquidação financeira da transação.
Estes dois fatores combinados: a possibilidade de apropriação de crédito apenas quando do seu efetivo recolhimento e o sistema de split payment, diferem substancialmente do modelo atual, no qual as empresas reconhecem créditos dos tributos já no momento da escrituração da nota fiscal referente às suas operações de entrada, bem como recebem de seus clientes o pagamento considerando o preço bruto praticado (preço mais tributos incluídos). Tais fatores no sistema atual fazem com que os contribuintes possam trabalhar com o dinheiro em seu caixa até terem que realizar o seu pagamento para o governo, o que geralmente ocorre no mês subsequente.
Com as mudanças na sistemática de reconhecimento de créditos e direcionamento dos tributos diretamente ao governo quando da liquidação financeira por parte das instituições financeiras, os contribuintes poderão ter impactos significativos, podendo afetar seu capital de giro, necessidade de aporte de caixa, diminuição de receitas financeiras etc,
A combinação desses dois fatores – a possibilidade de apropriação de créditos apenas após o efetivo recolhimento e a adoção do sistema de split payment – representa uma mudança significativa em relação ao modelo atual. Hoje, as empresas registram créditos tributários no momento da escrituração da nota fiscal das operações de entrada e recebem dos clientes o pagamento pelo valor bruto (preço acrescido dos tributos). Esse mecanismo permite que os contribuintes utilizem os recursos em caixa até o momento do pagamento ao governo, geralmente no mês seguinte.
Com a nova sistemática, que prevê o reconhecimento de créditos somente após o recolhimento e o direcionamento dos tributos diretamente ao governo no ato da liquidação financeira, os impactos podem ser significativos. Entre eles, destacam-se possíveis efeitos sobre o capital de giro, aumento da necessidade de aporte de caixa e redução de receitas financeiras.
Ademais, há de se observar o reflexo das alterações na carga tributária sobre os serviços contratados e produtos adquiridos, de modo a observar os potenciais impactos de fluxo de caixa nas aquisições, quando aplicável.
Os potenciais efeitos decorrentes das alterações na sistemática tributária não são uniformes, podendo variar significativamente conforme o setor econômico e o contexto específico analisado. Diante desse cenário, torna-se imprescindível a realização de análises detalhadas por parte dos contribuintes, de modo a identificar riscos e oportunidades associados às mudanças.
Essas análises permitirão a elaboração de um planejamento financeiro consistente, alinhado às transformações que terão início principalmente a partir de 2027, com a substituição do PIS e da Cofins pela CBS, mas que também deverão ser observadas ao longo dos anos seguintes do período de transição.
A Reforma Tributária sobre o Consumo não se limita à reorganização da estrutura dos tributos incidentes sobre o consumo, mas produz reflexos relevantes sobre as bases econômicas que sustentam a mensuração contábil e a avaliação da recuperabilidade dos ativos das companhias.
A transição para este novo modelo, a redução gradual dos tributos atualmente vigentes e a alteração das regras de creditamento e incentivos modificam variáveis econômicas essenciais, tais como margens operacionais, estrutura de custos, projeções de fluxo de caixa e expectativa de rentabilidade. Esses fatores, por sua vez, demandam revisão criteriosa de estimativas, premissas e julgamentos contábeis utilizados pelas companhias.
Neste contexto, a reforma tributária sobre o consumo passa a exercer influência direta sobre diversos aspectos contábeis, incluindo, mas não limitando a análise de recuperabilidade de ativos, aos efeitos de capital de giro e a classificação dos tributos a recuperar no balanço patrimonial, conforme detalhado a seguir.
(i) Análise de recuperabilidade de ativos de vida útil definida e indefinida
Nos termos do CPC 01 (R1) – Redução ao Valor Recuperável de Ativos / IAS 36 – Impairment of assets, ao final de cada período de reporte a Companhia deve avaliar se existem indícios de que um ativo de vida útil definida possa ter sofrido desvalorização, sendo necessário estimar o valor recuperável sempre que tais indicadores forem identificados. Adicionalmente, para ativos com vida útil indefinida e para o ágio, o teste de recuperabilidade é obrigatório, independentemente da existência de indícios de perda de valor, devendo ser realizado, no mínimo, anualmente.
Neste contexto, a Reforma Tributária sobre Consumo pode representar um gatilho relevante para testes de impairment para as demonstrações financeiras com período findo em 31 de dezembro de 2025 em diante, listamos abaixo algumas destas circunstâncias:
As circunstâncias supracitadas são exemplos não exaustivos de potenciais impactos da Reforma Tributária sobre Consumo na avaliação de valor recuperável dos ativos. É imprescindível que cada companhia proceda a uma análise criteriosa dos efeitos em suas operações, assegurando que a totalidade dos impactos seja devidamente identificada e refletida de forma apropriada em suas avaliações.
(ii) Efeitos no capital de giro
No modelo atual de tributação sobre o consumo, as companhias realizam, em periodicidade mensal, a apuração dos tributos incidentes em sua operação, sendo permitida a compensação entre débitos apurados nas vendas e os créditos gerados nas aquisições a qualquer momento, independentemente do fornecedor já ter efetivamente recolhido o imposto. Assim, apenas o resultado líquido da apuração é efetivamente recolhido ao Fisco.
Com a implementação da Reforma Tributária sobre o consumo, esse mecanismo sofre alteração relevante. Embora a legislação preveja a possibilidade de liquidação via Split Payment, essa sistemática ainda carece de regulamentação específica e operacionalização prática. Desta forma, no estágio atual, a metodologia aplicável é a vinculação do direito ao crédito ao efetivo recolhimento do tributo pelo fornecedor, caracterizando um claro efeito caixa.
Essa nova logica rompe com o modelo atual de compensação imediata e posterga o aproveitamento dos créditos fiscais, uma vez que o tributo incidente sobre as vendas continuará sendo recolhido normalmente, enquanto o crédito corresponde as compras somente será aproveitado após a confirmação do recolhimento na etapa anterior.
Essa postergação impacta diretamente o ciclo financeiro das companhias, ampliando a necessidade de recursos próprios ou de terceiros para sustentar as operações correntes e elevando a pressão sobre o capital de giro.
Do ponto de vista contábil, esse cenário exige que as companhias revisitem suas análises de capital de giro, considerando, entre outros aspectos:
Essa adaptação não se limita apenas nos ajustes nos controles internos e nos processos de apuração tributária, mas também uma reavaliação estratégica da estrutura de capital e da gestão financeira das organizações.
Abaixo evidenciamos um exemplo prático da situação supracitada:
Conforme ilustrado, o impacto mais perceptível no fluxo de caixa tende a ocorrer no primeiro mês da adoção da nova sistemática. Contudo, em cenários de alta sazonalidade, a defasagem entre a geração do crédito e seu efetivo prazo de compensação pode produzir efeitos recorrentes e mais significativos sobre a gestão de caixa. Diante disso, é essencial que a análise desses impactos seja alinhada e consistente com as demais áreas da companhia que utilizam essas informações, como por exemplo, as análises de impairment e demais julgamentos contábeis, assegurando a coerência entre as premissas econômicas adotadas nas diferentes avaliações.
(i) Classificação dos tributos a recuperar no balanço
Conforme mencionado no tópico (ii), os tributos a recuperar serão passiveis de compensação apenas quando forem efetivamente pagos pelo próprio contribuinte ou pelo fornecedor, em linha com a nova sistemática de extinção do débito previsto na legislação.
Dessa forma, para fins de apresentação nas demonstrações financeiras, as empresas precisaram desmembrar os saldos de tributo a recuperar em duas categorias distintas:
Essa segregação é essencial para a correta representação da posição financeira da companhia e influencia diretamente a classificação dos ativos no balanço patrimonial. Ressalta-se que os saldos de impostos a recuperar condicionado (pendentes de recolhimento), devem ser avaliados a cada período de reporte, para identificar se há perda do valor recuperável.
A Reforma Tributária sobre o Consumo redefine não apenas a lógica de apuração dos tributos, mas também as bases econômicas que sustentam as demonstrações financeiras. Seus efeitos alcançam diretamente a recuperabilidade de ativos, a gestão de capital de giro, a correta classificação dos tributos a recuperar no balanço, entre outros.
Embora os efeitos se intensifiquem ao longo do período de transição, a conexão entre a reforma tributária sobre o consumo e as análises contábeis já se mostra indispensável nas demonstrações contábeis de 2025. Neste contexto, torna-se fundamental a atuação integrada entre as áreas tributária, contábil e financeira, com revisão tempestiva de premissas, fortalecimento de controles internos e transparência nas divulgações, assegurando que os reflexos da reforma sejam adequadamente refletidos nas demonstrações financeiras.
Nota: os posicionamentos contábeis expostos neste artigo fundamentam-se nas discussões preliminares atualmente observadas no mercado, estando sujeitos a revisões e ajustes em função da evolução do tema e do amadurecimento das interpretações técnicas.