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A materialidade financeira segundo o ISSB: aplicação prática e expectativas regulatórias

Contexto e convergência regulatória

A integração entre sustentabilidade e desempenho financeiro deixou de ser uma tendência para se tornar uma diretriz para os negócios e compliance regulatório. No Brasil, esse avanço foi formalizado pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) pela Resolução CVM nº 193/2023 e pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) e Banco Central do Brasil (BCB) por meio da Resolução CMN 5.185/24, que apresenta os requerimentos de divulgação de informações financeiras relacionadas à sustentabilidade (“Relatório ISSB”), em conformidade com as normas IFRS S1 e IFRS S2, emitidas pelo International Sustainability Standards Board (ISSB).

Em 2024, a CVM publicou as resoluções nº 217, 218 e 219 que complementaram o arcabouço normativo, operacionalizando a adoção dos Pronunciamentos Técnicos CBPS 01 e CBPS 02 emitidos pelo Comitê Brasileiro de Pronunciamentos de Sustentabilidade (CBPS) equivalentes, respectivamente, aos IFRS S1 e IFRS S2. Essas normas promovem a conectividade entre as informações financeiras e de sustentabilidade e estabelecem critérios técnicos. Além disso, o novo Relatório ISSB passa a ser objeto de asseguração tanto período de adoção voluntária quanto no período mandatório.

A adoção obrigatória para empresas com registro de companhia aberta na CVM e Bancos de segmento S1 e S2 está prevista para os exercícios iniciados a partir de 1º de janeiro de 2026, com asseguração razoável conduzida por auditores independentes. Os reguladores esperam que as entidades tratem as informações de sustentabilidade com o mesmo nível de qualidade, consistência e governança aplicados às demonstrações financeiras.

A essência da materialidade financeira

A materialidade financeira é o filtro que define o que de relevante – do ponto de vista quantitativo e qualitativo – deve ser divulgado. De acordo com a IFRS S1, a informação é material quando sua omissão, distorção ou obscurecimento pode influenciar as decisões dos usuários primários das demonstrações financeiras como investidores, credores e demais provedores de capital.

Dessa forma, a materialidade é relacional, pois depende de como os usuários interpretam os efeitos potenciais dos riscos e das oportunidades de sustentabilidade sobre os fluxos de caixa, o acesso a financiamento e o custo de capital da entidade.

Essa abordagem requer julgamento profissional e uma visão externa desses stakeholders. A entidade deve adotar a perspectiva de quem investe, não apenas de quem reporta. É importante lembrar que a ausência de demanda explícita dos investidores não torna um tema imaterial, e riscos de baixa probabilidade de ocorrência, mas alto impacto, podem ser materiais se alterarem as expectativas do mercado sobre o desempenho futuro da organização.

Proporcionalidade e escopo da cadeia de valor

O ISSB reconhece a complexidade de mapear toda a cadeia de valor de uma entidade e, por isso, introduz o mecanismo de proporcionalidade. A entidade não precisa realizar uma busca exaustiva de informações. É esperado que seja utilizado dados razoáveis e rastreáveis, disponíveis na data-base do Relatório ISSB, sem incorrer em custos ou esforços desproporcionais.

Desse modo, o foco deve ser na relevância e viabilidade, priorizando a identificação de riscos e oportunidades que possam afetar as perspectivas financeiras da entidade, direta ou indiretamente, ao longo de sua cadeia de valor.

Na prática, as entidades devem avaliar quais partes da cadeia (fornecedores, distribuidores, clientes ou parceiros) são mais relevantes para sua exposição a riscos climáticos, regulatórios ou reputacionais, concentrando esforços onde o impacto financeiro é mais provável.

Dependências, impactos e interconexões

A IFRS S1 orienta as entidades a compreender sua dependência e seus impactos sobre os recursos e relacionamentos que sustentam sua capacidade de gerar valor. Esses elementos abrangem os seis capitais tradicionalmente reconhecidos:

Por um lado, é fundamental que as entidades considerem as dependências que representam os recursos essenciais à continuidade operacional. Por outro lado, os impactos podem refletir nas atividades da entidade com foco na contribuição para a preservação, regeneração ou degradação desses recursos.

Compreender essas sinergias é um passo essencial para identificar, por exemplo, os riscos de transição, os riscos físicos e as oportunidades que possam modificar o perfil financeiro e reputacional da entidade, especialmente em setores de alta exposição climática e de uso intensivo de recursos naturais dentro do processo produtivo da organização.

Julgamento e horizontes temporais

A definição de materialidade exige julgamento e, nesse processo, a análise profissional e conhecimento sobre o negócio são fatores determinantes, especialmente quando o horizonte de tempo e o impacto financeiro dos riscos e oportunidades variam.

A avaliação de materialidade deve abranger curto, médio e longo prazos, considerando os seguintes aspectos:

  • O ciclo operacional e de investimentos da organização;
  • As práticas usuais de planejamento estratégico;
  • O horizonte de avaliação dos investidores e provedores de capital.

As entidades devem combinar critérios quantitativos (como magnitude financeira, sensibilidade de custos, volatilidade e impacto em fluxo de caixa) com critérios qualitativos (como relevância estratégica, exposição pública, percepção de governança e expectativa de stakeholders). Nenhum fator possui hierarquia sobre o outro, ou seja, ambos são essenciais para a consistência do julgamento. As entidades deverão documentar o processo de julgamento de materialidade, de forma rastreável, justificada e coerente entre períodos.
A transparência na aplicação desses critérios reforça a credibilidade das informações e a confiança dos investidores.

Conectividade e consistência

Um dos divisores de águas do ISSB é a conectividade entre as informações financeiras e as divulgações de sustentabilidade. Essa conexão deve ter um foco conceitual, mas também considerar a avaliação qualitativa e quantitativa, permitindo que o usuário compreenda como riscos e oportunidades de sustentabilidade se traduzem em efeitos financeiros, e vice-versa. O principal objetivo é avaliar como esses riscos e essas oportunidades se conectam de forma consistente aos aspectos financeiros da entidade, seja em termos de alocação de capital ou, até mesmo, no processo de destinação de recursos, tomada de decisão sobre investimentos e desinvestimentos. Portanto, é indispensável que as entidades busquem:

  • Coerência entre premissas aplicadas ao longo do processo de definição dos temas materiais e suas projeções financeiras;
  • Consistência entre as informações públicas divulgadas em outras fontes de comunicação como formulário de referência, demonstração financeira, relatórios de riscos e oportunidades socioambientais e relatórios de sustentabilidade;
  • Integração prática entre o modelo de negócio, gestão estratégica, monitoramento dos riscos e oportunidades e do desempenho financeiro a longo prazo.

Vale a pena ressaltar que a conectividade é uma exigência das normas e tem o intuito de auxiliar as entidades a demonstrar o planejamento financeiro e a resiliência institucional frente aos riscos e as oportunidades identificadas. Não menos importante, as premissas devem ser compatíveis com o planejamento estratégico, plano de transição, projeções divulgadas ao mercado, entre outros.

 

Pontos de atenção

As premissas aplicadas ao processo de definição da materialidade, a seleção de indicadores e as metodologias de mensuração passarão a ser objeto de asseguração razoável a partir de 2026. Portanto, os auditores independentes observarão, especialmente:

  • A consistência entre premissas e projeções financeiras;
  • A rastreabilidade do processo de definição de materialidade;
  • A integração entre demais informações públicas como formulário de referência, politicas de gestão de riscos socioambientais, demonstrações financeiras e relatórios de sustentabilidade;
  • O fluxo de governança responsável pela definição e revisão da materialidade.

As entidades devem desenvolver mecanismos formais de governança para revisão e aprovação da materialidade, de modo que os riscos e as oportunidades materiais estejam integrados aos processos de planejamento e reporte financeiro.

A materialidade financeira tem papel fundamental para estabelecer a conexão entre sustentabilidade e desempenho econômico da entidade. Mais do que um requisito técnico, representa um novo patamar de governança, capaz de alinhar transparência, comparabilidade e integridade das informações divulgadas.

Ao aplicar os princípios de materialidade, proporcionalidade e conectividade com rigor, as entidades não apenas atendem às exigências regulatórias, mas fortalecem sua reputação e sua relação com investidores e sociedade, proporcionamento ao mercado informações mais confiáveis e demonstrando como o negócio da organização é sustentável.

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