Durante sua passagem pelo Brasil para participar de um encontro do CIO Program da Deloitte, iniciativa voltada ao relacionamento e desenvolvimento de líderes de tecnologia, Raquel Buscaino, líder da equipe de Tecnologias Inovadoras e Exponenciais (NExT) no Office of the CTO da Deloitte nos Estados Unidos, conversou com a Mundo Corporativo sobre o impacto das tecnologias emergentes nos negócios. Na entrevista, ela aborda temas como inteligência artificial, computação quântica, segurança cibernética, chips especializados, interfaces cérebro-computador e até mesmo o papel da indústria espacial na inovação corporativa – sempre com um olhar atento às oportunidades e aos desafios específicos do contexto brasileiro.
MC: Como a computação quântica, combinada com a inteligência artificial, pode transformar setores como saúde, agricultura e entretenimento – globalmente e sob a perspectiva brasileira?
Raquel: A inteligência artificial (IA) e a computação quântica são duas das tecnologias mais transformadoras que temos atualmente – e o mais empolgante é que elas se reforçam mutuamente. A IA pode tornar a computação quântica mais utilizável ao ajudar a reduzir ruídos, otimizar caminhos entre sistemas clássicos e quânticos e gerenciar as camadas de orquestração. Por outro lado, a computação quântica pode eventualmente abrir novos tipos de problemas para a IA resolver, devido ao seu potencial de poder computacional.
Vamos tomar como exemplo o setor de saúde e ciências da vida, especificamente a descoberta de medicamentos. Estimativas da indústria sugerem que cerca de 90% dos candidatos a medicamentos falham em testes clínicos, e para os que têm sucesso, o processo pode levar de 10 a 15 anos e custar até um ou dois bilhões de dólares, considerando as falhas e o financiamento. A IA já está ajudando em áreas como descoberta de alvos, desenho de testes e estratificação de pacientes. A computação quântica ainda está em estágio inicial, mas pesquisas indicam que ela poderá, um dia, simular interações moleculares e otimizar pipelines de P&D de formas que os computadores clássicos não conseguem – potencialmente economizando anos e reduzindo custos.
A agricultura é outra área. Já estamos coletando grandes volumes de dados de dispositivos IoT, sensores inteligentes e satélites. A IA nos ajuda a interpretar esses dados hoje, mas com o tempo, a computação quântica poderá levar a modelagem climática e de culturas a um novo patamar. Para o Brasil, onde a agricultura é uma parte significativa da economia, a capacidade de combinar dados de satélite com sensores em solo e realizar cálculos em tempo real pode ser transformadora para a produtividade e a sustentabilidade.
E há também o entretenimento. Atualmente, a IA está impulsionando a hiperpersonalização de conteúdo e experiências imersivas em realidade estendida (xR). No futuro, a computação quântica poderá viabilizar simulações complexas e personalização em escala, tornando o entretenimento ainda mais interativo e envolvente.
Sob a perspectiva brasileira, gostaria de destacar novamente o setor de saúde. Com uma população numerosa e uma legislação robusta de proteção de dados – a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) – o Brasil tem uma oportunidade real de construir sistemas de IA poderosos e já em conformidade desde o início.
Embora nenhuma dessas transformações aconteça da noite para o dia, o potencial combinado da IA e da computação quântica nos setores de saúde, agricultura e entretenimento é imenso – globalmente, e especialmente aqui no Brasil.
MC: Um dos principais desafios que as empresas estão enfrentando é sobre como adotar a inteligência artificial de forma plena, completa. Como isso pode ser endereçado?
Raquel: Nós falamos sobre todas as possibilidades empolgantes da IA, mas a realidade é que muitas organizações ainda estão lutando com a adoção completa. E eu costumo dizer: tecnologia é a parte fácil – a parte mais difícil é estratégia, governança e pessoas.
Um desafio comum é o que chamamos de “paralisia de piloto”. Você vê dezenas de equipes executando pilotos de IA, mas poucas chegam à produção – o que acontece principalmente quando não há uma estratégia empresarial clara conectando os projetos de IA aos objetivos de negócio. Para superar isso, a IA precisa deixar de ser um experimento e passar a ser uma ferramenta com propósito estratégico real dentro de uma organização.
A segunda barreira são os dados. Nas últimas décadas, as empresas coletaram enormes quantidades de dados, muitas vezes em silos e sem governança forte. Quando tentam aplicar IA, percebem que primeiro precisam “organizar a casa”, porque sem dados bem estruturados e confiáveis, a IA não pode entregar precisão ou consistência.
E então há o fator humano, que pode ser o mais difícil de todos. Estamos enfrentando um nível de mudança verdadeiramente sem precedentes. Não se trata apenas de atualizar habilidades antigas – trata-se de requalificação e de criar culturas onde as pessoas estejam prontas para se adaptar, aprender continuamente e colaborar de novas maneiras.
Por fim, e muito importante, governança e conformidade não podem ser uma reflexão tardia. A IA precisa ser implantada de forma responsável, com salvaguardas para evitar viés ou resultados prejudiciais, e com transparência adequada para que mantenha a confiança.
Quando as empresas abordam essas quatro áreas – estratégia, dados, pessoas e governança – é quando a IA realmente começa a entregar em escala.
MC: No Brasil, estudos mostram que a qualidade dos dados frequentemente é baixa. Então, não importa se sua empresa tem a melhor tecnologia de IA – se seus dados forem falhos ou imprecisos, a tecnologia não entregará resultados significativos. Nesse contexto, como chips especializados e computação de borda contribuem para melhorar o desempenho e a confiabilidade dos sistemas de IA, especialmente ao lidar com processamento de dados em tempo real e tomada de decisões?
Raquel: A qualidade dos dados é um desafio global, e a IA tende a amplificar o que já está nos dados – bom ou ruim. Mesmo com os modelos mais avançados, entradas falhas levarão a resultados comprometidos.
Do lado do hardware, estamos vendo progresso rápido com chips especializados como NPUs, TPUs e outros processadores específicos de domínio. Muitas empresas de tecnologia estão projetando seus próprios chips para otimizar o desempenho e reduzir o risco na cadeia de suprimentos. Essa mudança é especialmente importante para a computação de borda – seja em PCs habilitados com IA, smartphones ou outros dispositivos. Processar dados localmente reduz a latência e, crucialmente, mantém os dados no dispositivo, o que melhora significativamente a privacidade.
Para as organizações, isso significa repensar estratégias de infraestrutura. Com mais cargas de trabalho sendo tratadas na borda, menos dados fluem para a nuvem, o que muda como os recursos são alocados. O resultado é um modelo híbrido mais resiliente que equilibra computação na borda, na nuvem e nos dispositivos.
Vejo isso como uma tendência definidora: mais chips especializados, mais IA na borda e uma ênfase crescente na privacidade como um diferencial. Empresas que adaptarem sua infraestrutura de acordo estarão melhor posicionadas nesta nova era.
MC: Voltando à computação quântica, o avanço dessa tecnologia introduz novos riscos à cibersegurança. Quais estratégias podem ser implementadas para proteger dados sensíveis nesse contexto?
Raquel: Sim, a computação quântica traz enormes oportunidades, mas também novos riscos – especialmente para a cibersegurança. A maior preocupação é a criptografia. Protocolos amplamente utilizados hoje, como RSA e ECC, podem eventualmente ser quebrados por algoritmos quânticos, razão pela qual adversários já estão adotando uma estratégia de “coletar agora, decifrar depois”: coletando dados criptografados hoje com a intenção de decifrá-los quando as capacidades quânticas amadurecerem.
A boa notícia é que algoritmos criptográficos pós-quânticos (PQC) já estão disponíveis. Em 2024, o Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia dos EUA (NIST) anunciou o primeiro conjunto de algoritmos PQC padronizados, que as organizações já podem começar a testar. Isso ajuda a proteger novos dados, mas não resolve o desafio dos dados legados já coletados.
É por isso que uso o que chamo de estrutura dos “Cinco Is” (em inglês):
O primeiro é Inventariar (Inventory): mapear onde a criptografia está sendo realmente usada em seus sistemas: bancos de dados, APIs, VPNs, IoT, até mesmo sua infraestrutura de gerenciamento de chaves. Muitas organizações não têm essa visão completa hoje.
O segundo passo é Identificar (Identify): nem todos os dados são iguais. Você precisa priorizar as “joias da coroa”, como informações pessoais, registros financeiros, propriedade intelectual e, especialmente, dados de ciclo longo, porque esse é o tipo que os adversários podem estar coletando hoje para decifrar depois.
Em seguida vem a Implementação (Implementation): é aqui que você começa a testar os novos algoritmos pós-quânticos do NIST, mas também usa abordagens híbridas que combinam criptografia clássica e PQC, já que ainda estamos em um período de transição. Também é importante avaliar o desempenho, porque o PQC pode, no fim das contas, significar chaves maiores e maior demanda computacional.
O quarto passo é Inquirir (Inquire): no fim das contas, não se trata apenas dos seus próprios sistemas. Você precisa perguntar aos seus fornecedores e parceiros como eles estão se adaptando, se oferecem agilidade criptográfica (a capacidade de trocar algoritmos rapidamente) e se já testaram PQC em escala. Basta um elo fraco no seu ecossistema para colocar sua organização em risco.
Por fim, Melhorar (Improve): este é um processo contínuo. Isso significa recriptografar ou sanitizar dados legados sempre que possível, reduzir o tempo de retenção de dados sensíveis, reforçar controles de acesso e atualizar continuamente a governança para que você esteja preparado à medida que os padrões evoluem.
Tomadas em conjunto, essas etapas ajudam uma organização a passar da conscientização para a ação, e a se antecipar à ameaça quântica em vez de correr para reagir depois.
MC: Como a integração da IA aos sistemas organizacionais está redefinindo processos centrais, e quais habilidades serão essenciais para acompanhar essa transformação?
Raquel: Vejo a IA como um catalisador de mudança. Ela já está redefinindo processos centrais – por exemplo, movendo organizações de ciclos periódicos de relatórios para relatórios contínuos, ou mudando de fluxos de trabalho manuais e intensivos em mão de obra para fluxos automatizados. Isso cria uma enorme alavancagem de tempo. Se a IA pode liberar até 30–50% do tempo de alguém, isso é transformador. A questão então se torna: como usamos esse tempo com sabedoria? Idealmente, ele é redirecionado para trabalhos estratégicos de maior valor que muitas vezes são deixados de lado pelas operações rotineiras.
É por isso que as habilidades que mais importam não são apenas técnicas. Sim, precisaremos de pessoas que entendam como construir, implantar e governar a IA de forma responsável. Mas os diferenciais serão as habilidades humanas: criatividade, pensamento crítico, engenhosidade e a capacidade de conectar equipes e ideias. Desenvolvedores já estão vendo a IA gerar código dentro de seus ambientes. A verdadeira oportunidade está em como eles escolhem usar o tempo que isso cria – esperançosamente enfrentando desafios maiores e mais complexos que exigem iniciativa humana.
Essa combinação de letramento técnico com capacidade humana única é o que definirá a força de trabalho da era da IA.
MC: Há outras tecnologias emergentes que você gostaria de destacar? Ou algum desenvolvimento esperado para surgir nos próximos meses?
Raquel: Sempre há tecnologias emergentes empolgantes que valem a pena destacar, mas duas se destacam para mim neste momento.
Primeiro, inovações dentro da indústria espacial. O setor espacial como um todo está à beira de uma grande disrupção e está começando a entregar valor para organizações muito além da indústria aeroespacial. Por exemplo, parte do meu trabalho envolve conectar empresas de estações espaciais comerciais com clientes do setor biofarmacêutico. Utilizando as propriedades únicas da microgravidade no espaço, você pode estudar biologia e química de maneiras que simplesmente não são possíveis na Terra – proteínas cristalizam de forma diferente, células-tronco se comportam de maneiras únicas, e materiais podem ser projetados com novas propriedades. Para uma empresa biofarmacêutica, não prestar atenção ao que está acontecendo no espaço pode significar perder a descoberta que leva ao seu próximo medicamento ou terapia inovadora. É por isso que vejo o espaço como uma fronteira de inovação que será cada vez mais relevante em diversos setores.
A segunda área é a neurociência e as interfaces cérebro-computador (BCIs). As BCIs começaram como ferramentas médicas para restaurar habilidades perdidas, mas agora estamos vendo aplicações iniciais que realmente ampliam capacidades humanas. Ainda estamos no começo dessa jornada, mas à medida que nossa compreensão do cérebro se aprofunda, as oportunidades para novas terapias, aprimoramento de desempenho e até novos modos de interação com a tecnologia são tremendas.
Claro, há muitas outras tecnologias emergentes que valem a pena acompanhar, mas acho que essas duas capturam como avanços na fronteira da ciência podem ter efeitos em cadeia em diversos setores. E isso é o que mais me empolga sobre o futuro.
Raquel Buscaino esteve no Brasil para participar do CIO Program da Deloitte, no DotHub