Com a aprovação da Reforma da Previdência na Câmara, outra proposta anunciada como prioritária pelo governo ganhou protagonismo: a Reforma Tributária. Em comum, os textos das Propostas de Emenda à Constituição (“PEC”) em tramitação no Congresso Nacional contemplam a substituição de tributos federais, estaduais e municipais por um novo imposto sobre bens e serviços – o “IBS”, incidente de forma não-cumulativa, isto é, recaindo somente sobre o valor efetivamente agregado em cada etapa da produção e circulação de bens e serviços.
A PEC 45/2019, idealizada pelo economista Bernard Appy e em discussão na Câmara dos Deputados, estabelece a criação do IBS com extinção gradativa em 10 anos do IPI, do PIS e da COFINS (tributos federais), bem como do ICMS e do ISS, de competência de estados e municípios, respectivamente. Além disso, a proposta em questão visa introduzir um Imposto Seletivo Federal, incidente sobre “bens e serviços geradores de externalidades negativas, cujo consumo se deseja desestimular” como, por exemplo, cigarros e bebidas alcoólicas.
Por seu turno, a PEC 110/2019, de iniciativa de líderes partidários no Senado Federal, tem por base a PEC 293/2004, de autoria do economista e ex-deputado Luiz Carlos Hauly. As principais diferenças desta proposta em relação à PEC 45/2019 se referem à (i) extinção do IOF e da Cide-Combustíveis (tributos federais), os quais, neste caso, também seriam substituídos pelo IBS; (ii) extinção da CSLL com aumento proporcional da alíquota do IRPJ; e (iii) prazo de transição inferior, correspondente a 5 anos.
O Governo Federal já declarou que enviará um terceiro projeto de Reforma Tributária, que aproveitaria itens das reformas em tramitação, excluindo, porém, o ICMS e o ISS em função da complexidade de implementação de alteração tão substancial na ordem de estados e municípios.
Verifica-se, em todos os projetos, o objetivo central de simplificação do sistema tributário brasileiro, especialmente no que concerne aos tributos indiretos – também chamados de tributos sobre consumo. Conforme guia publicado em 2017 pela OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (International VAT/GST Guidelines), mais de 165 países adotam tributos não cumulativos sobre consumo. Resumidamente, são tributos tidos como economicamente eficientes porque facilitam a arrecadação, garantem neutralidade e evitam distorções na competitividade e livre concorrência da cadeia produtiva. É o que embasou os princípios e conceitos do IBS.
Ocorre que, no Brasil, a implementação do IBS enfrenta complexidade única, uma vez que envolve as principais fontes de arrecadação de estados e municípios. Esta barreira decorre da própria Constituição Federal de 1988 que, em homenagem ao pacto federativo, autorizou que estados e municípios criassem impostos sobre a circulação de mercadorias e prestação de serviços.
De fato, é possível concluir que a autonomia dos entes federados pressuponha a existência de mecanismos próprios de gestão e arrecadação de receitas. Entretanto, a despeito de o ordenamento jurídico-tributário brasileiro determinar que as normas gerais para instituição de cada tipo de tributo sejam definidas em legislação federal, a introdução e o regramento detalhado cabem à legislação interna dos 26 estados e do Distrito Federal e dos 5.570 municípios brasileiros. E é justamente neste ponto em que residem os maiores desafios encontrados por contribuintes que operam no país.
As alíquotas, bases de cálculo, regimes de tributação e regras para pagamento do ICMS dependem, dentre outros fatores, da origem, do destino e da natureza da operação, do tipo de mercadoria, do enquadramento do adquirente e da existência de acordos entre os estados envolvidos. Não há consenso entre a doutrina, a jurisprudência e as fazendas estaduais quanto à extensão do conceito de “comunicação” para fins de caracterização do fato gerador do imposto. A substituição tributária – regime que concentra a tributação na indústria e antecipa o recolhimento do imposto incidente em toda a cadeia – adicionou complicação excepcional a determinados setores, ao mesmo tempo em que aumentou a base de arrecadação dos estados e facilitou a fiscalização do ICMS. Incentivos fiscais visando a atração de novos investimentos foram estabelecidos sem critérios eficientes de controle e acirraram a chamada “guerra fiscal”.
No âmbito dos municípios, as regras do ISS também variam em função do local onde está o prestador do serviço ou seu respectivo tomador. Não há segurança em relação à incidência do imposto sobre certas transações, como, por exemplo, a exploração de direitos autorais, softwares, transferência de dados via streaming, aplicativos e outros tipos de operações não antevistas à época da promulgação da Constituição Federal de 1988. Alguns dos serviços mencionados se encontram em zona cinzenta entre o ISS e o ICMS, colaborando para disputas entre municípios, estados e contribuintes.
Se, por um lado, é consenso que o ambiente inóspito referido anteriormente demanda reformas urgentes, por outro lado é essencial destacar que estados e municípios ficam com a menor parte do total arrecadado em tributos no Brasil – aproximadamente 30% e 7%, respectivamente –, ao passo que são responsáveis por boa parte dos direitos essenciais assegurados aos cidadãos, tais como educação, saúde, segurança pública e saneamento básico.
Portanto, para que os projetos de reforma tributária que incluem o ICMS e o ISS sejam bem-sucedidos, é fundamental que garantam mecanismos efetivos de manutenção dos níveis de arrecadação, da gestão de receitas e do poder fiscalizatório de estados e municípios. Outra ordem de prioridade poderia representar riscos ao pacto federativo e trazer maior insegurança jurídica para o ambiente que se pretende reformar.
*Guilherme Giglio é sócio da área de Consultoria Tributária da Deloitte. É advogado especialista em Direito Tributário e atua como juiz do Tribunal de Impostos e Taxas do Estado de São Paulo