Autores: Raquel Balhote, Manager e Mário Felício, Manager
Como bem sabemos, o regime do Pilar Dois visa criar condições de concorrência equitativas para as empresas de âmbito multinacional, através da implementação de um novo regime de tributação internacional que corresponderá a um “imposto extra” à tributação doméstica dos países envolvidos.
Em termos práticos, visa garantir, por jurisdição/geografia, uma taxa de tributação efetiva (“TTE”) mínima de 15% que, sendo uma nova realidade, acaba por ter impacto em diferentes vertentes fiscais, tal como anteriormente apresentado pelo Tax Lab da Deloitte, nomeadamente nas abordagens do Qualified CbCR, nas declarações fiscais previstas ou nas medidas de exclusão de aplicação do RIMG.
A determinação da TTE é por si um desafio já que o RIMG incorpora conceitos distintos dos que nos fomos habituando a usar quando ao longo dos anos fomos apurando e divulgando nas contas qual a TTE de uma empresa.
A este respeito, um dos temas que tem sido alvo de muitas discussões prende-se com as considerações do Pilar Dois ao nível do impacto dos incentivos fiscais no apuramento da TTE, quer sejam obtidos decorrentes de investimentos de natureza produtiva, quer estejam assocados a investimentos realizados em atividades de investigação e desenvolvimento (“I&D”).
De facto, os incentivos fiscais têm vindo a assumir um papel preponderante nas decisões das empresas e na promoção da competitividade e inovação, gerando um impacto substancial no desenvolvimento económico e social, não só a nível nacional, como também a nível regional (parâmetro largamente avaliado no impacto dos projetos alvos de cofinanciamento público), pelo que o seu eventual impacto no apuramento do valor da TTE tem deixado muitas empresas portuguesas apreensivas e preocupadas.
Na medida em que os benefícios fiscais são caraterizados, na sua generalidade, pela redução ou isenção de pagamento de impostos, poderá existir uma “colisão” (não planeada) entre o RIMG e os regimes fiscais disponíveis à data, nomeadamente os estabelecidos no Código Fiscal do Investimento, Decreto-Lei n.º 162/2014, na sua redação atual, ou seja, Benefícios Fiscais Contratuais ao Investimento Produtivo, Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (“RFAI”) e Sistema de Incentivos Fiscais em Investigação e Desenvolvimento Empresarial II (“SIFIDE II”).
Com efeito, a TTE mínima definida no RIMG poderá limitar a eficácia de aplicação de incentivos fiscais quando estes, em conjunto com todas as demais particularidades das regras de computação da TTE, se traduzam na redução dessa taxa abaixo de 15%, por geografia.
De acordo com a OCDE[1], o impacto do RIMG nos regimes de incentivos fiscais deverá ser avaliado em três níveis – jurisdição (nomeadamente o regime de tributação vigente, incluindo a taxa de tributação, a definição da base tributável e tax provisions), entidade (no que respeita às características da estrutura acionista e à natureza das atividades dos investidores) e incentivos (designadamente as condições de elegibilidade do contribuinte e de substância e o âmbito dos incentivos fiscais).
Deste modo, nem todas as jurisdições, empresas e incentivos fiscais são afetados da mesma forma pelas regras do Pilar Dois. Em particular, cada jurisdição deve considerar (i) se existem elementos do seu sistema fiscal de tributação doméstico que possam tornar as empresas mais suscetíveis de estarem sujeitas a taxas de tributação baixas, (ii) a natureza das entidades que operam na sua jurisdição e as atividades que desenvolvem, e, por fim, (iii) os incentivos fiscais que são proeminentemente disponibilizados a essas empresas.
Por outro lado, a OCDE apresenta um “mecanismo de mitigação” dos efeitos dos incentivos fiscais na TTE, com a introdução de créditos de imposto reembolsáveis qualificados (Qualified Refundable Tax Credits, “QRTC”), através dos quais se procura determinar certas características comuns que os incentivos fiscais de diferentes jurisdições necessitam de considerar para que os mesmos não conduzam à redução da TTE. À luz do Pilar Dois, os QRTC deverão ser tratados como receita, ao invés de se traduzirem numa redução à base de imposto, o que, para efeitos práticos, se traduz num impacto positivo para as empresas e para a TTE apurada.
Porém, estabelece o RIMG que os QRTC são créditos de imposto reembolsáveis pagos, em numerário ou equivalente, a uma entidade constituinte no prazo limite de 4 anos a contar da data em que a entidade constituinte adquiriu o direito de receber o crédito de imposto reembolsável nos termos da legislação da jurisdição que concede o crédito. Assim, na situação em que os incentivos que sejam atribuídos por via de dedução à coleta, quando exista, e reportáveis, quando não exista coleta suficiente, por um prazo de, por exemplo, 12 anos (como é o caso do SIFIDE II), não será possível beneficiar do regime de exceção atribuído aos QRTC, o que impacta negativamente a TTE a apurar.
Não obstante, e tendo em consideração o impacto que as novas regras de tributação podem originar nos regimes de incentivos fiscais atuais, é da responsabilidade de cada jurisdição definir linhas de orientação e/ou alternativas que permitam minimizar os impactos do RIMG na competitividade e interesse das empresas para ter acesso a este tipo de apoios públicos face a outras jurisdições.
Com a aproximação das regras Pilar Dois, diversas jurisdições procuraram minimizar este impacto nos regimes de incentivos fiscais mediante, por exemplo, a revisão antecipada da natureza e enquadramento dos mesmos na legislação local, havendo já países que optaram por converter os incentivos fiscais em créditos fiscais reembolsáveis. Veja-se o caso da Irlanda que, para os benefícios fiscais associados à I&D, promoveu a revisão do programa que se encontrava em vigor de forma a que este fosse considerado como um crédito fiscal reembolsável e, assim, garantiu um alinhamento positivo com a legislação. Outra das alternativas exploradas prende-se com a criação de novos programas totalmente alinhados com a legislação em vigor do Pilar Dois, como foi o caso de Singapura (criação do programa Refundable Investment Credit).
Contudo, e ainda que o presente artigo tenha como enfoque o impacto do RIMG na utilização dos incentivos fiscais por parte das empresas, importa não esquecer que existem diversos outros fatores com impacto na oscilação da TTE, tais como as diferenças permanentes existentes entre os registos contabilísticos e a sua elegibilidade para efeitos de apuramento do lucro tributável.
De igual modo, a alocação de resultados a determinada empresa pelo mínimo de mercado (em face das políticas de pricing intragrupo adotadas) pode ser a razão pela qual se verifica que a utilização de benefícios fiscais tem um impacto desfavorável ao nível da TTE. Nestes casos, pode o Grupo rever e/ou ajustar a distribuição de funções, riscos e ativos ao longo da cadeia de valor e entre geografias, sendo potencialmente possível, por vezes com pequenas e simples revisões, dotar as geografias em causa de uma rentabilidade de mercado acima dos valores mínimos anteriormente assumidos.
Outros pontos relevantes para esta análise são (i) o registo ou a divulgação dos ativos por impostos diferidos, e (ii) as diferenças temporárias poderem não ser verificadas/realizadas no prazo de 5 anos e, consequentemente, passarem a qualificar-se como definitivas, obrigando, assim, a rever a TTE apurada no ano em que tais diferenças foram registadas e qualificadas como temporárias.
Por tudo o exposto, e conforme já mencionado num dos nossos artigos do Tax Lab da Deloitte, porque “(…) a aplicação do Pilar 2 será um desafio para os Grupos”, é fundamental que as empresas realizem uma avaliação constante a três níveis e numa base anual: a) impacto do RIGM na sua perspetiva e realidade; b) impacto do RIGM na perspetiva da geografia em que as empresas atua,; e, c) impacto do RIGM no Grupo onde as empresas estão inseridas, garantindo-se a identificação antecipada de áreas de potenciais reanálises e considerações a ter face ao acesso das empresas a programas de incentivos fiscais.
[1] OECD (2022), Tax Incentives and the Global Minimum Corporate Tax: Reconsidering Tax Incentives after the GloBE Rules, OECD Publishing, Paris, https://doi.org/10.1787/25d30b96-en.